A prisão das relações
Já fui de esconder o que sentia, e sofri com isso. Hoje não escondo nada do que sinto e penso e, às vezes, também sofro com isso, mas ao menos não compactuo mais com um tipo de silêncio nocivo: o silêncio que tortura o outro, que confunde, o silêncio a fim de manter o poder num relacionamento.
Assisti ao filme “Mentiras Sinceras” com uma pontinha de decepção – os comentários haviam sido ótimos, porém a contenção inglesa do filme me irritou um pouco – mas, nos momentos finais, uma cena aparentemente simples redimiu minha frustração. Embaixo de um guarda-chuva, numa noite fria e molhada, um homem diz para uma mulher o que ela sempre precisou ouvir. E eu pensei: como é fácil libertar uma pessoa de seus fantasmas e, libertando-a, abrir uma possibilidade de tê-la de volta, mais intensa!
Falar o que se sente é considerado uma fraqueza. Ao sermos absolutamente sinceros, a vulnerabilidade se instala. Perde-se o mistério que nos veste tão bem, ficamos nus. E não é este tipo de nudez que nos atrai.
Se a verdade pode parecer perturbadora para quem fala, é extremamente libertadora para quem ouve. É como se uma mão gigantesca varresse, num segundo, todas as nossas dúvidas. Finalmente, se sabe. Mas sabe-se o quê? O que todos nós, no fundo, queremos saber: se somos amados.
Tão banal, não? E, no entanto, esta banalidade é fomentadora das maiores carências, de traumas que nos aleijam, nos paralisam e nos afastam das pessoas que nos são mais caras. Por que a dificuldade de dizer para alguém o quanto ele é – ou foi – importante? Dizer, não como recurso de sedução, mas como um ato de generosidade, dizer sem esperar nada em troca. Dizer, simplesmente.
A maioria das relações – entre amantes, entre pais e filhos, e mesmo entre amigos – ampara-se em mentiras parciais e verdades pela metade. Pode-se passar anos ao lado de alguém falando coisas inteligentíssimas, citando poemas, esbanjando presença de espírito, sem alcançar a delicadeza de uma declaração genuína e libertadora: dar ao outro uma certeza e, com a certeza, a liberdade. Parece que só conseguiremos manter as pessoas ao nosso lado se elas não souberem tudo. Ou, ao menos, se não souberem o essencial. E assim, através da manipulação, a relação passa a ficar doentia, inquieta, frágil. Em vez de uma vida a dois, passa-se a ter uma sobrevida a dois.
Deixar o outro inseguro é uma maneira de prendê-lo a nós – e este “a nós“ inspira um providencial duplo sentido.
Mesmo que ele tente se libertar, estará amarrado aos pontos de interrogação que colecionou. Somos sádicos e avaros ao economizar nossos “eu te perdoo”, “eu te compreendo”, “eu te aceito como és” e o nosso mais profundo “eu te amo” – não o “eu te amo” dito às pressas no final de uma ligação telefônica, por força do hábito, mas sim o “ eu te amo” que significa: “seja feliz da mesma maneira que você escolher, meu sentimento permanecerá o mesmo”.
Libertar uma pessoa pode levar menos de um minuto. Oprimi-la é trabalho para uma vida. Mais que as mentiras, o silêncio é que é a verdadeira arma letal das relações humanas.
By Martha Medeiros.
Compartilhe:
- Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Twitter(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Pinterest(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Tumblr(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no LinkedIn(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Reddit(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Pocket(abre em nova janela)
- Clique para imprimir(abre em nova janela)
- Clique para enviar um link por e-mail para um amigo(abre em nova janela)
Relacionado
This entry was posted on 03/02/2014 at 6:08 and is filed under Relacionamentos with tags Amantes, Amigos, Amor, Arma letal, Ato, Avaros, Banalidade, Carências, Cena, Certeza, Comentários, Dúvidas, Decepção, Declaração, Delicadeza, Dificuldade, Doentia, Espírito, Essencial, Eu te amo, Fantasmas, Feliz, Filhos, Filme, Força, Fraqueza, Fria, Frustração, Generosidade, Guarda-chuva, Hábito, Homem, Inseguro, Interrogação, Liberdade, Ligação, Manipulação, Martha Medeiros, Mão, Mentiras, Mentiras Sinceras, Metade, minuto, Mistério, Molhada, Momentos, Mulher, Noite, Nudez, Nus, País, Poder, Poemas, Pontos, Presença, Recurso, Relações, Relações humanas, Relacionamento, Sádicos, Sedução, Segundo, Sentimento, Silêncio, Sinceros, Sobrevida, Telefônica, Trabalho, Traumas, Troca, Verdade, Verdades, Vida, Vulnerabilidade. You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0 feed. You can leave a response, or trackback from your own site.
08/02/2014 às 22:48
achei bem legal
CurtirCurtir